domingo, 16 de março de 2008

Notícias da terra

Depois vieram as notícias da terra, que giravam todas em volta do grande acontecimento do ano: a contínua e rápida ascenção da fortuna de Don Calogero Sedàra: seis meses antes terminara o prazo do empréstimo que concedera ao barão Tumino e ele ficara-lhe com a terra e graças às mil onças que emprestara possuía agora mais uma propriedade que lhe rendia quinhentas por ano; em Abril conseguira comprar por dez réis de mel coado dois alqueires de terreno e nessa pequena propriedade havia uma pedreira muito procurada que ele se propunha explorar; vendera o trigo em condições mais vantajosas do que nunca, nos momentos de pânico e de carestia que se seguiram ao desembarque. A voz de Don'Nofrio encheu-se de rancor: "Fiz as contas pelos dedos: dentro de pouco tempo os rendimentos de Don Calogero serão iguais aos de Vossa Excelência aqui em Donnafugata; e a propriedade que tem cá na terra é a mais pequena."

Boas vindas

O palácio Salina era contíguo à Igreja Matriz. A pequena fachada com sete varandas sobre a praza não deixava imaginar a dimensão do edifício, cujas traseiras se prolongavam numa extensão de duzentos metros: eram construções de estilos diferentes, mas harmoniosamente dispostas em torno de três amplos pátios que davam para um grande jardim todo murado. Na entrada principal que dava para a praça, os viajantes foram sujeitos a novas manifestações de boas-vindas. Don Onofrio Rotolo, o intendente da casa, não participara, nunca participava, nas recepções oficiais à entrada da povoação. Educado na rígida escola da princesa Carolina, considerava o vulgus como inexistente e o Príncipe como residente no estrangeiro enquanto não transpusesse o limiar do seu palácio; por isso estava ali, a dois passos à frente do portão, baixíssimo, velhíssimo, barbudíssimo, ao lado da mulher, que era bastante mais nova do que ele e opulenta, rodeado pelos criados e pelos oito guardas com o Leopardo de outo no barrete e, nas mão, oito espingardas de uma inoquidade muito duvidosa. "Estou feliz por dar a Vossas Excelências as boas vindas a esta vossa casa. Entrego o palácio no mesmo estado em que foi deixado."

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Pessoas devotadas

Donnafugata já estava perto com o seu palácio, com os seus repuxos, com a memória dos seus santos antepassados, com aquela impressão de infância eterna, e as pessoas também eram simpáticas, devotadas e simples. Nesse instante, porém, algo o preocupou: sabia-se lá se depois dos recentes acontecimentos as pessoas eram tão devotadas como dantes. "Veremos."

O Leopardo
G. Tomasi do Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

terça-feira, 11 de março de 2008

Poço

Os cocheiros obrigavam os cavalos a dar umas voltas a passo para os refrescar antes de lhes darem de beber, os criados estendiam as toalhas sobre a palha que ficara da debulha, no pequeno rectângulo de sombra projectado pelo edifício. Comeram junto do solícito poço. Em volta, o campo fúnebre ondulada, amarelo de restolhos, negro de barbas de espigas calcinadas; o lamento das cigarras enchia o céu; era como o estertor de uma Sicília queimada que em finais de Agosto esperava em vão pela chuva.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Sol e poeira

Já eram onze e durante aquelas cinco horas só tinham visto cabeços indolentes de colinas chamejando de amarelo ao sol. O trote nos percursos planos depressa alternara com as longas e lentas arrancadas nas subidas, e com o passo pridente nas descidas; passo e trote, aliás, diluídos igualmente no fluxo contínuo dos guizos, que já só se ouvia como manifestação sonora do cenário requeimado. Tinham atravessado aldeias embrutecidas, pintadas de azul-pálido; tinham transposto pontes de uma estranha magnificênciasobre riachos totalmente secos, tinham costeado escarpas desesperadas que nem os sorgos e as giestas conseguiam consolar. Nem uma árvore, nem uma gota de água: sol e poeira. No interior das carruagens, fechadas precisamente devido a esse sol e a essa poeira, a temperatura devia ter atingido os cinquenta graus.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

quinta-feira, 6 de março de 2008

Flor de laranjeira

Agora a estrada atravessava os laranjais em flor e tal como a Lua Cheia anula a paisagem também o perfume nupcial das flores de laranjeira anulava tudo: o cheiro dos cavalos suados, o cheiro a couro dos estofos, o cheiro do Príncipe e o cheiro do jesuíta, tudo era varrido por aquele perfume islâmico que evoca buris e além-túmulos carnais.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Conventos de Palermo

A estrada descia ligeiramente e ali perto já se via Palermo totalmente às escuras. As casas baixas e amontoadas pareciam esmagadas pelo volume desmedido dos conventos; eram às dezenas, todos enormes, muitos deles reunidos em grupos de dois ou três, conventos de homens e de mulheres, conventos ricos e conventos pobres, conventos nobres e conventos plebeus, conventos de Jesuítas, de Beneditinos, de Franciscanos, de Capuchinhos, de Carmelitas, de Redentoristas, de Agostinhos... Pálidas cúpulas d curvas imprecisas semelhantes a seios vazios de leite erguiam-se ainda mais alto, mas eram eles, os conventos, que conferiam à cidade a sua tristeza e o seu carácter, o seu decoro e ao mesmo tempo aquela sensação de morte que nem a frenética luz siciliana conseguia dissipar. Àquela hora, já quase noite cerrada, eram eles os déspotas da paisagem.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Jantar na villa Salina

O jantar na villa Salina era servido com o mesmo fausto esbonetado que então caracterizava o estilo do Reino das Duas Sicílias. Só o número de comensais (catorze contando com os donos da casa, os filhos, as governantas e os perceptores) bastava para conferir um aspecto imponente à mesa. Coberta com uma toalha finíssima mas remendada, resplandecia à luz de um potente candeeiro a petróleo precariamente pendurado sob a ninfa, um lustre de Murano. Pelas janelas ainda entrava luz, mas as figuras brancas que simulavam baixos-relevos sobre o fundo escuro das bandeiras das portasjá se perdiam na sombra. A baixela era de prata maciça e o medalhão liso dos esplêndidos copos de cristal facetado da Boémia ostentava as iiciais F.D. (Fernandus dedit) em memória de uma munificência real, mas os pratos, todos marcados com iniciais ilustres, eram os sobreviventes dos estragos feitos pelos moços da cozinha e provinham de serviços diferentes. Os de formato maior, Capodimonte lindíssimos com a larga cercadura verde-amêndoa salpicada de pequenas âncoras douradas, estavam reservados ao Príncipe que gostava de se rodear de objectos à sua escala, exceptuando a mulher. Quando entrou na sala de jantar já estavam todos reunidos, a Princesa era a única que estava sentada, os outros mantinham-se de pé atrás das cadeiras. Diante do seu talher, ladeados por uma pilha de pratos, sobressaíam os flancos de prata da enorme terrina com a tampa encimada pelo LEopardo dançante. Era o próprio Príncipe quem deitava a sopa nos pratos, grata tarefa símbolo das atribuições alimentares do pater familias.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

quarta-feira, 5 de março de 2008

Jardim para cegos

Mas o jardim, comprimido e mortificado entre os seus limites, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos cobriam com o seu aroma apimentado o aroma protocolar das rosas e o aroma oleoso das magnólias amodorradas pelos cantos; e lá bem no fundo notava-se ainda o cheiro a hortelã misturado ao arma infantil da acácia e ao cheiro a compota da murta, e do outro lado do muro o pomar de citrinos derramava sobre o jardim o cheiro a alcova das primeiras flores de laranjeira.

Era um jardim para cegos: a visão era constantemente ofendida mas o olfacto podia sentir um prazer intenso embora não delicado. As rosas Paul Neyron cujas plantas ele próprio comprava em Paris tinham degenerado: estimuladas primeiro e depois cansadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, tinham-se transformado numa expécie de couves cor de carne, obscenas, que exalavam um aroma denso e quase repugnante que nenhum criador frances ousaria esperar.


O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, em Itália