sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O fim de um cachalote

«...Os caçadores de baleias, para cumprirem as habituais ordens das autoridades marítimas, apressam-se a levar para o mar a carcaça do cachalote, cuja decomposição infectaria rapidamente toda a zona circundante. Não é uma empresa fácil, porque embora pareça que basta arrastar a carcaça para duzentos ou trezentos metros da costa e confiá-la a uma corrente favorável que a leve, o vento que muda caprichosamente pode voltar logo a trazê-la; e pode mesmo acontecer que os caçadores de baleias tentem durante dias libertar-se da massa fedorenta sem o conseguirem. Se, para cúmulo, o mar se enfurece, pode acontecer que o indesejado despojo fique encravado pelas ondas debaixo de falésias inacessíveis onde, devido ao seu contundente fedor, constituirá durante meses um suplício para os habitantes da região. Finalmente, num belo dia de sol, o intestino grosso inchado de gás rebenta com grande estrondo e cobre a zona circundante de resíduos que constituem uma gulosa comida para os multicolores caranguejos-coveiros. Por vezes estes sinistros animais marcam encontro, para o seu repugnante five o'clock, com elegantes gambas que levam as suas delicadas antenas a passear sobre o enorme bolo, se a maré alta tem a gentiliza de lhes servir de meio de transporte. Seja como for, o pobre cachalote percorre progressivamente o caminho da derrocada, desde a primeira ferida que lhe é vibrada pelo homem até à intervenção das ínfimas criaturas que o preparam para a conclusão do ciclo fatal em que se resolve o destino dos seres vivos. A morte dos cachalotes é majestosa como um enorme desmoronamento e, nas necrópoles que os caçadores de baleias lhes preparam nas pequenas enseadas, os seus despojos acumulam-se como as ruínas de uma catedral.»

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Almas ou alminhas

As almas ou alminhas: uma cruz sobre um cubo de pedra com azulejo azul e branco com imagem de São Miguel. A dois de Novembro as almas aparecem porque São Miguel as pesca do purgatório com uma corda. É preciso uma corda para cada alma. São Miguel está cheia de cruzes e, por conseguinte, de almas que vagueiam pelos rochedos, pelos precipícios, pelas praias de lava onde o mar se enfurece. Alta noite ou manhã muito cedo, se se está bem atento, podem ouvir-se as suas vozes. São lamentos confusos, ladaínhas e sussurros que, se se é céptico, é fácil confundir com o ruído do mar ou com o grito dos abutres. Muitas são almas de náufragos.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Aldeia

De longe ela pareceu-lhes bonita e de ordenada geometria, como são frequentemente as pequenas aldeias de pescadores. As habitações, todavia, pareciam-lhes de forma bizarra. Quando entraram no lugar perceberam porquê. Quase todas as casas tinham como fachada a proa de um barco; eram casas de planta triangular, algumas de madeira preciosa, cuja única parede de pedra era a que fechava os dois lados do triângulo. Algumas eram casas belíssimas, contam os atónitos ingleses, cujo interior pouco tinha de casa porque os objectos - lucernas, bancos, mesas e até as camas - quase tudo tinha sido apanhado no mar. Muitas tinham vigias que faziam as vezes de janelas e visto que davam para o precipício e para o mar lá em baixo, parecia que se estava num barco ancorado no cimo de uma montanha. Aquelas casas eram construídas com restos de naufrágios que os rochedos das Flores e do Corvo ofereceram durante séculos às naus que por ali passavam.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

As Flores

Em Abril de 1839 dois cidadãos britânicos desembarcaram na ilha das Flores que, com a do Corvo, é a ilha mais remota e solitária do arquipélago dos Açores. Conduzia-os a curiosidade, que é sempre um óptimo guia. Aportaram a Santa Cruz, uma aldeia situada no extremo setentrional da ilha, que possuía um pequeno porto natural e que ainda hoje é o local mais seguro para desembarcar nas Flores. De Santa Cruz empreenderam uma viagem costeira, a pé e de liteira, até Laje das Flores, que fica a uns quarenta quilómetros de distância, porque queriam ver a igreja que os portugueses ali tinham construído no século dezassete. a liteira, que oito homens da ilha levavam aos ombros, era feita da vela de um barco e, pela descrição dos viajantes, dir-se-ia antes uma rede atada a dois paus. Como todas as outras ilhas do arquipélago, Flores é de formação vulcânica, mas ao contrário de São Miguel e do Faial, por exemplo, que têm praias claras e bosques verdíssimos, esta é uma grande placa de lava negra no meio do oceano.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

sábado, 9 de agosto de 2008

Rochas

Moveu o braço para a esquerda e apontou duas excrecências turquesa, como dois chapéus pousados na água. Que rochas feias, disse, parecem almofadas. Não as vejo, disse a mulher. Além, um pouco mais paras a esquerda, mesmo em frente ao meu dedo, estás a vê-las?, disse Marcel. Passou o braço direito pelos ombros da mulher, com a mão estendida para a frente. Mesmo na direcção do meu dedo, repetiu.
O revisor sentara-se num banco junto do parapeito, tinha terminado a sua volta e estava a observar os movimentros deles. Certamente intuiu o sentido da conversa, porque se aproximou sorrindo e falou para a mulher com ar divertido. Ela ouviu com atenção e depois exclamou: nãão! e levou a mão à boca com ar travesso e infantil como que a reprimir uma risada. O que é que está a dizer?, perguntou o homem com o ar ligeiramente parvo de quem não está a seguir a conversa. A mulher dirigiu ao revisor um olhar cúmplice. Riam-lhe os olhos e era muito bonita. Diz que não são rochas, disse, mantendo propositadamente em suspenso o que acabara de saber. O homem olhou-a com ar interrogativo e talvez um pouco aborrecido. São pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores, exclamou ela, foi exactamenteo que ele disse. E finalmente libertou a gargalhada reprimida, uma pequena gargalhada breve e sonora.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Tipos

Os homens são de pele clara, de olhos admirados como se neles pairasse o espanto de um espectáculovisto e esquecido, são silenciosos e solitários, mas não tristes, e riem muitas vezes e por nada como crianças. As mulheres são belas e altivas, com os malares proeminentes e a testa alta, caminham com os cântaros à cabeça e ao descer as escadarias íngremes que levam à água nada do seu corpo se move, de modo que parecem estátuas a quem algum deus tenha concedido o andar.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ocidente

Depois de ter velejado durante muitos dias e muitas noites, compreendi que o Ocidente não tem fim, antes continua a deslocar-se connosco, e que podemos persegui-lo quanto quisermos que nunca o alcançamos. Assim é o mar ignoto que fica para além das Colunas, sem fim e sempre igual, do qual emergem, como pequena espinha dorsal de um colosso desaparecido, pequenas cristas de ilhas, nós de rocha perdidos no azul.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Qual vai ser a Sugestão de Setembro 2008?

Veja lá se consegue descobrir qual vai ser o livro, e respectivo autor, e o lugar para o ler, que iremos sugerir em Setembro de 2008 no Ler por aí... Espreite O Blog, pois vamos colocar pequenos trechos do livro* ao longo do mês de Agosto. Quando souber, contacte-nos.




Margarida Branco
Ler por aí... em Setembro de 2008

* A reprodução de partes da obra é feita com autorização da editora.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Abóbora

Começava aperguntar-se se aquele seria o trabalho certo para si. Era muito bom pensar que se podia ajudar as pessoas a resolver os seus problemas, mas esses problemas podiam ser de partir o coração. O caso Malatsi fora esquisito. Esperara que Mma Malatsi ficasse transtornada quando lhe mostrara a prova de que o marido fora comido por um crocodilo, mas ela não parecera nada perturbada. Que tinha ela dito? Mas tenho imenso que fazer. Que coisa tão extraordinária e insensível para alguém dizer quando se acaba de perder o marido. Será que ela não lhe dava mais valor do que isso?
Mma Ramotsw deteve-se, a colher semi-mergulhada no guisado que fervia em lume brando. Quando as pessoas ficavam assim imperturbáveis, Mma Christie esperava que o leitor desconfiasse. O que teria Mma Christie pensado se tivesse visto a fria reacção de Mma Malatsi, a sua virtual indiferença? Teria pensado: Esta mulher matou o marido! É por isso que fica imperturbável perante a notícia da sua morte. Ela sabia desde o início que ele estava morto!
Mas então e o crocodilo e o baptismo, e os outros pecadores? Não, ela tinha de estar inocente. Talvez lhe desejasse a morte, e então a sua prece fora atendida pelo crocodilo. Será que isso nos fazia criminosos aos olhos de Deus, se então acontecesse alguma coisa? Deus saberia, percebem, que desejáramos a morte de alguém porque não se pode ter segredos para Deus. todos sabiam isso.
Deteve-se. Era altura de tirar a abóbora da panelae de a comer. Em última análise, era isso que solucionava estes grandes problemas da vida. Podia pensar-se e tornar a pensar e não chegar a lado algum, mas tinha de se continuar a comer a abóbora. Isso fazia-nos voltar à terra. Isso dáva-nos uma razão para prosseguir. Abóbora.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botswana

Abrir um negócio (3)

Abriram o escritório numa segunda-feira. Mma Ramotswe sentou-se à sua secretária e Mma Makutsi à dela, por trás da máquina de escrever. Olhou para Mma Ramotswe e sorriu ainda mais abertamente.
- Estou pronta para o trabalho - disse ela. - Estou pronta para começar.
- Hummm - fez Mma Ramotswe. - Ainda estamos no princípio. Acabamos de abrir. Temos de esperar que apareça um cliente.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botsuana

Abrir um negócio (2)

Havia muito que fazer. Foi chamado um mestre de obras para substituir o estuque danificado e reparar o telhado de zinco e, de novo perante a oferta de pagamento à vista, isso foi executado numa semana. Depois Mma Ramotswe deitou-se ao trabalho de pintar, e depressa concluiu o exterior em ocre e o interior em branco. Comprou cortinas amarelas novas para as janelas e, num invulgar momento de extravagância, deixou-se tentar por um conjunto de escritório com duas secretárias e duas cadeiras, novinho em folha. O seu amigo, Mr. J. L. B. Matekoni, proprietário da Tlokweng Road Speedy Motors, trouxe-lhe uma velha máquina de escrever excedente das suas próprias necessidades e que trabalhava muito bem, e com isso o escritório ficou pronto a abrir - logo que ela arranjasse uma secretária.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botswana

Abrir um negócio

Mma Ramotswe tinha pensado que não seri fácil abrir uma agência de detectives. As pessoas cometiam sempre o erro de pensar que abrir um negócio era simples e depois descobriam que havia todo o tipo de problemas escondidos e exigências imprevistas. Ouvira falar de pessoas que tinham aberto os seus negócios e aguentado quatro ou cinco semanas até ficarem sem dinheiro ou reservas, ou ambos. Era sempre mais difícil do que se tinha pensado.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botsuana