quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Igreja de Nossa Senhora de Fátima

- Isso não é moderno demais, para o Cerejeira?
- O gajo gosta... vais ver.
- Como é que tu sabes onde hás-de pôr a pia da água benta, se?...
Se não era católico. Nem crente.
- Tenho um frade que me aconselha.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Expansão

- Venâncio... Ligue ao arquitrecto Keil do Amaral. ele que venha ao Ministério, amanhã. Marque cedo, logo às...
- Vossa Excelência não estará lembrado, mas amanhã é domingo... Domingo de Páscoa.
- Não importa!
Como não lhe importavam os quadros dramáticos da área a despovoar. Os pastos, as nascentes. Gente que viria a ser expulsa de casa.
"Maldito seja!"
"Porque não põe o campo de aviação debaixo da janela dele?"
"Na Alameda DomAfonso Henriques!"

Carta Corográfica do Concelho de Lisboa. Com a sua própria lapiseira, Duarte riscou um perímetro fora da cidade: Alaúde - Pote d'Água - Azinhaga das Chitas - Musgueira...
Logo de seguida, a topografia, a geologia. Amostras, levantamentos.
E não se podendo esperar por resultados de demandas, as pistas rasoiraram os muros das quintas. Galgaram talhões de alface e couve-penca.
Contava-se, mais tarde, que já havia máquinas a betumar e ainda por lá andavam galinhas.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Avenida Álvares Cabral

Cheio de sol, aquele prédio acabado de construir. Entrava em todas as divisões da casa, chegava ao fundo dos quartos.
Nunca ali batia a sombra das casas fronteiriças. Estariam a un vinte metros e eram mais baixas. Do terceiro andar não se via o edifício da Garagem Monumental. Nem o Jardim-Cinema. Dir-se-ia que não existiam.
Existiam. Eram modernos.
"Uma bela avenida" - elogio de quase todos.
- Repare-se como está diferente - respondia Duarte.

Janeiro de 1938. Duarte recém-chegado à presidência da Câmara Municipal de Lisboa.
A Avenida Pedro Álvares Cabral reduzia-se aos bocados de passeio diante do Liceu e do Jardim-Escola.
E ele estava ao corrente. É de crer que lhe tenham chegado protestos, enquanto fora Ministro da Educação.
Ele próprio protestara. Exigira o fornecimento regular de água às duas escolas. Acabara com o acesso dos estudantes por um passadiço que ia dar à travessa de Santa Quitéria.
- Uma porcaria!
Imundice.
Cascas, talos, vísceras e penas deitados pelas portas das cozinhas. Ninguém recolhia.
Moscas. Ratazanas.
Do gabinete do Campo de Santana, Duarte reclamava:
- Não haverá na Câmara uma carroça que se mande lá?
Ninguém que obrigasse alguns mariolas sem emprego a varrer o meio da rua? A levar o lixo para os aterros?
O que fazia um pelourinho diante dos Paços do Concelho, se a Cidade não conseguia ajustar o povo?
- Deixe-se de prepotências, senhor Ministro - responderam-lhe. - E fale do que sabe.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A Linha

Dir-se-ia que a estrada era o rio. O mar.
Cimento. A marginal era uma grande extensão de cimento, progredindo sobre um dos patamares da ravina. Vários quilómetros de muros de suporte. De vedações em pedra.
Abaixo, antes do leito do rio, o caminho-de-ferro.
Lisboa - Estoril. A única linha eléctrica em todo o País. Bastante imperfeita, segundo se dizia. Logo que chegara às Obras Públicas, em 1932, Duarte mandara corrigir o percurso entre o Bom Sucesso e Alcântara.
Entretanto, a continuação até Cascais.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Estalagem da Boa Viagem

De súbito, a ideia da estalagem. Ali, à curva da Boa Viagem, no sítio da moradia de Teixeira Gomes.
"Belo sítio..."
Um pavilhão construido quase sobre o mar. Salas envidraçadas, uma varanda envolvendo-as. Conforto ao anoitecer dos sábados de Inverno. Um jardim. A pérgola e os concertos de ar livre, nas tardes de domingo.
E quem lhe projectaria a estalagem?

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Ler por aí... em Janeiro 2009

Veja lá se consegue descobrir qual vai ser o livro, e respectivo autor, e o lugar para o ler, que iremos sugerir em Janeiro de 2009 no Ler por aí... Vamos colocar pequenos excertos do livro* durante as próximas semanas. Veja também a página de Sugestão. Quando souber, contacte-nos.

Margarida Branco
Ler por aí... em Janeiro 2009

* A reprodução de partes da obra é feita com autorização da editora.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O fim de um cachalote

«...Os caçadores de baleias, para cumprirem as habituais ordens das autoridades marítimas, apressam-se a levar para o mar a carcaça do cachalote, cuja decomposição infectaria rapidamente toda a zona circundante. Não é uma empresa fácil, porque embora pareça que basta arrastar a carcaça para duzentos ou trezentos metros da costa e confiá-la a uma corrente favorável que a leve, o vento que muda caprichosamente pode voltar logo a trazê-la; e pode mesmo acontecer que os caçadores de baleias tentem durante dias libertar-se da massa fedorenta sem o conseguirem. Se, para cúmulo, o mar se enfurece, pode acontecer que o indesejado despojo fique encravado pelas ondas debaixo de falésias inacessíveis onde, devido ao seu contundente fedor, constituirá durante meses um suplício para os habitantes da região. Finalmente, num belo dia de sol, o intestino grosso inchado de gás rebenta com grande estrondo e cobre a zona circundante de resíduos que constituem uma gulosa comida para os multicolores caranguejos-coveiros. Por vezes estes sinistros animais marcam encontro, para o seu repugnante five o'clock, com elegantes gambas que levam as suas delicadas antenas a passear sobre o enorme bolo, se a maré alta tem a gentiliza de lhes servir de meio de transporte. Seja como for, o pobre cachalote percorre progressivamente o caminho da derrocada, desde a primeira ferida que lhe é vibrada pelo homem até à intervenção das ínfimas criaturas que o preparam para a conclusão do ciclo fatal em que se resolve o destino dos seres vivos. A morte dos cachalotes é majestosa como um enorme desmoronamento e, nas necrópoles que os caçadores de baleias lhes preparam nas pequenas enseadas, os seus despojos acumulam-se como as ruínas de uma catedral.»

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Almas ou alminhas

As almas ou alminhas: uma cruz sobre um cubo de pedra com azulejo azul e branco com imagem de São Miguel. A dois de Novembro as almas aparecem porque São Miguel as pesca do purgatório com uma corda. É preciso uma corda para cada alma. São Miguel está cheia de cruzes e, por conseguinte, de almas que vagueiam pelos rochedos, pelos precipícios, pelas praias de lava onde o mar se enfurece. Alta noite ou manhã muito cedo, se se está bem atento, podem ouvir-se as suas vozes. São lamentos confusos, ladaínhas e sussurros que, se se é céptico, é fácil confundir com o ruído do mar ou com o grito dos abutres. Muitas são almas de náufragos.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Aldeia

De longe ela pareceu-lhes bonita e de ordenada geometria, como são frequentemente as pequenas aldeias de pescadores. As habitações, todavia, pareciam-lhes de forma bizarra. Quando entraram no lugar perceberam porquê. Quase todas as casas tinham como fachada a proa de um barco; eram casas de planta triangular, algumas de madeira preciosa, cuja única parede de pedra era a que fechava os dois lados do triângulo. Algumas eram casas belíssimas, contam os atónitos ingleses, cujo interior pouco tinha de casa porque os objectos - lucernas, bancos, mesas e até as camas - quase tudo tinha sido apanhado no mar. Muitas tinham vigias que faziam as vezes de janelas e visto que davam para o precipício e para o mar lá em baixo, parecia que se estava num barco ancorado no cimo de uma montanha. Aquelas casas eram construídas com restos de naufrágios que os rochedos das Flores e do Corvo ofereceram durante séculos às naus que por ali passavam.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

As Flores

Em Abril de 1839 dois cidadãos britânicos desembarcaram na ilha das Flores que, com a do Corvo, é a ilha mais remota e solitária do arquipélago dos Açores. Conduzia-os a curiosidade, que é sempre um óptimo guia. Aportaram a Santa Cruz, uma aldeia situada no extremo setentrional da ilha, que possuía um pequeno porto natural e que ainda hoje é o local mais seguro para desembarcar nas Flores. De Santa Cruz empreenderam uma viagem costeira, a pé e de liteira, até Laje das Flores, que fica a uns quarenta quilómetros de distância, porque queriam ver a igreja que os portugueses ali tinham construído no século dezassete. a liteira, que oito homens da ilha levavam aos ombros, era feita da vela de um barco e, pela descrição dos viajantes, dir-se-ia antes uma rede atada a dois paus. Como todas as outras ilhas do arquipélago, Flores é de formação vulcânica, mas ao contrário de São Miguel e do Faial, por exemplo, que têm praias claras e bosques verdíssimos, esta é uma grande placa de lava negra no meio do oceano.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

sábado, 9 de agosto de 2008

Rochas

Moveu o braço para a esquerda e apontou duas excrecências turquesa, como dois chapéus pousados na água. Que rochas feias, disse, parecem almofadas. Não as vejo, disse a mulher. Além, um pouco mais paras a esquerda, mesmo em frente ao meu dedo, estás a vê-las?, disse Marcel. Passou o braço direito pelos ombros da mulher, com a mão estendida para a frente. Mesmo na direcção do meu dedo, repetiu.
O revisor sentara-se num banco junto do parapeito, tinha terminado a sua volta e estava a observar os movimentros deles. Certamente intuiu o sentido da conversa, porque se aproximou sorrindo e falou para a mulher com ar divertido. Ela ouviu com atenção e depois exclamou: nãão! e levou a mão à boca com ar travesso e infantil como que a reprimir uma risada. O que é que está a dizer?, perguntou o homem com o ar ligeiramente parvo de quem não está a seguir a conversa. A mulher dirigiu ao revisor um olhar cúmplice. Riam-lhe os olhos e era muito bonita. Diz que não são rochas, disse, mantendo propositadamente em suspenso o que acabara de saber. O homem olhou-a com ar interrogativo e talvez um pouco aborrecido. São pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores, exclamou ela, foi exactamenteo que ele disse. E finalmente libertou a gargalhada reprimida, uma pequena gargalhada breve e sonora.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Tipos

Os homens são de pele clara, de olhos admirados como se neles pairasse o espanto de um espectáculovisto e esquecido, são silenciosos e solitários, mas não tristes, e riem muitas vezes e por nada como crianças. As mulheres são belas e altivas, com os malares proeminentes e a testa alta, caminham com os cântaros à cabeça e ao descer as escadarias íngremes que levam à água nada do seu corpo se move, de modo que parecem estátuas a quem algum deus tenha concedido o andar.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores