quinta-feira, 30 de julho de 2009

Quatro horas

A partir das quatro, a Avenida Névski fica vazia, é pouco provável que encontremos um único funcionário. Uma ou outra costureira da loja atravessará correndo a Avenida Névski com uma caixa nas mãos; algumainsignificante presa do oficial de diligências, reduzida à miséria, com o seu capote de frisa; algum esquisitão de visita à capital, para quem todas as horas são iguais; alguma inglesa alta e esgrouviada, com um indispensável e um livro nas mãos; algum capataz, homem russo de sobrecasaca em demicoton cinturada pelos sovacos, a barba estreitinha, a vida eternamente alinhavada, o corpo todo sempre a mexer - costas, braços, pernas, cabeça - quando vai respeitosamente pela rua; de vez em quando, um humilde artesão; e não encontraremos mais ninguém na Avenida Névski.

Ler por aí... em Agosto 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Três horas

Soam as três horas, a exposição termina, a multidão refaz-se... É uma nova mudança, às três. Chega de repente à Avenida Névski a Primavera: cobre-se toda de funcionários de uniformes verdes. Os famintos conselheiros titulares, áulicos e outros estugam o passo o mais que podem. Os jovens registadores de colégio, os secretários provinciais e de colégio correm a aproveitar a ocasião de passearem pela Avenida Névski com o ar de quem não passou nada seis horas no serviço.

Ler por aí... em Agosto 2009

Hora bendita

Nesta hora bendita, entre as duas e as três da tarde, a que poderemos chamar a capital em movimento na Avenida Névski, acontece a principal exposição de todas as melhores criações humanas. Este exibe uma sobrecasaca catita com pele de castor da melhor qualidade; aquele, um maravilhosonariz grego; um terceiro ostenta excelentes suíças; uma quarta, uma par de olhos bonitos e um chapéu espantoso; um quinto, um anel de talismã no elegante dedo mindinho; uma sexta, o pezinho no seu sapatinho encantador; um sétimo, uma gravata surpreendente; um oitavo, um bigode de pasmar. Soam as três horas, a exposição termina, a multidão refaz-se...

Ler por aí... em Agosto 2009

domingo, 26 de julho de 2009

Meio-dia

Ao meio-dia fazem as suas incursões na Avenida Névski os perceptores de todas as nacionalidades com os seus educandos de colarinhos de cambraia. Os Johns ingleses e os Kock franceses andam de braço dado com os pupilos entregues aos seus cuidados paternais e, com uma solenidade decente, explicam-lhes que as tabuletas sobre as entradas das lojas foram concebidas para, por meio delas, se saber o que se encontra dentro das respectivas lojas. As perceptoras - misses pálidas, eslavas rosadas - caminham majestosamente atrás das suas garotas airosas e serigaitas, dando ordens - que leantem um pouco mais o ombro, que endireitem as costas; em suma, a esta hora, a Avenida Névski é uma avenida pedagógica.

Ler por aí... em Agosto

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Ao amanhecer

Ao longo de um único dia, quanta veloz fantasmagoria se desenrola aqui! Quantas mudanças acontecem em vinte e quatro horas! Começemos pelo amanhecer, quando toda a Petersburgo cheira a pão quente acabado de cozer, quando se enche de velhas com os seus vestidos e capas esfarrapadas, em incursões pelas igrejas e contra o transeunte compassivo. A esta hora, a Avenida Névski está vazia: os corpulentos proprietários das lojas e seus caixeiros ainda dormem metidos nas suas camisas de noite holandesas ou ensaboam a bochecha nobre e tomam café; os pedintes são aos bandos às portas das pastelarias, onde o Ganimedes sonolento, que ainda ontem voava como uma mosca servindo chocolate, sai à rua com a vassoura na mão e sem gravata e lher atira bolos e restos de petiscos.

Ler por aí... em Agosto 2009

Qual será a Sugestão de Agosto 2009?

DESAFIO: descobra qual vai ser o livro, e respectivo autor, e o lugar para o ler, que iremos sugerir em Agosto 2009 no Ler por aí... Vá espreitando por aqui e também na nossa página da Próxima Sugestão. pois vamos colocar pequenos trechos do livro. Quando souber, contacte-nos.











Margarida Branco
Ler por aí... em Agosto de 2009

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O charme do velho mundo

- O charme do velho mundo - disse Vasco, içando-se do balcão. - O Arménio não pode comprar isso. Oh, estou quilómetros à frente desse rapaz e ele nem sequer sabe disso. Eu viajei, sabes, e compreendo a mentalidade moderna. Na América, se uma coisa tem cem anos, é venerada. Eu sei porque é que os turistas vão vir.
Teresa acenou que sim com a cabeça, sem saber o que ele tinha dito. As palavras de António ao almoço surgiam aqui e ali, e o seu sentido era o mais claro possível. "Eu estou preparado, sabes." Ela mantinha o rosto voltado para baixo. Mãe Misericordiosa, os sujos mecanísmos de tudo aquilo!
- Ums pratos antiquados - disse Vasco beijando as pontas dos dedos. - Isso vai trazê-los a voar. Sabes o que eu fiz hoje? Uma salada de orelha e rabo de porco, tal como a minha mãe costumava fazer, com um bocadinho de cebola crua, alho, coentros, azeite e vinagre. Tão saborosa que nem a quero vender. Provei-a e disse: "Então, vasco, será justo? Será justo atacar o jovem Arménio com uma arma secreta como esta?" - Rui-se e tossiu e segurou o peito como se ele pudesse fugir a voar.

Alentejo Blue
Monica Ali
A Ler por aí... no Litoral Alentejano














Foto retirada do blog Elvira's Bistrot

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Café da Internet sem Internet

Uma borboleta, azul-pólvora, brilhou por instantes no gargalo da sua garrafa, no tampo da mesa, nas costas de uma cadeira, cintilando e girando como uma heroína a fazer uma fuga elaborada. Teresa viu-a mergulhar e bater as asas pela sala for a até ao bar onde se desviou da fila de velhas costas curvadas e pescoços barbeados e caiu de repente no chão.
"Escuta", disse-lhe Teresa em silêncio, "eu sei o que tu sentes".
O café estava aberto há três horas e já parecia que ali estava desde sempre. Apesar de a porta e a única janela se manterem abertas, o ar estava pesado como pomada e infestado de peixe. As paredes eram de um belo tom de verde mas nelas estava pendurado o calendário do ano passado e um estúpido quadro de uma tourada. Era um café da Internet sem Internet e ninguém esperava mais do que isso. As pessoas ocupavam os seus lugares, os velhos no bar, os mais novos nas mesas, como se nenhum outro rumo fosse possível e esta noção, esta inevitabilidade pesada, pesasse sobre ela e a fizesse bocejar.

Alentejo Blue
Monica Ali
A Ler por aí... no Litoral Alentejano

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Restelo

- E agora...
O Plano de Urbanização de Groer, e a Encosta da Ajuda.
Terrenos de sobra. Mas poucas verbas para continuar com os bairros económicos.
Bastara ao Estad o invocar "Interesse Público", e passara imediatamente a dono de umas tantas quintas. Contudo, aos detentores de muito capital ninguem exigiria o mesmo desapossamento, sem que se desconfiasse de comunismo.
Então, moradias de luxo.
Uma faixa da encosta que se transformaria em zona excelsa. Compradores de tom, rigorosamente seleccionados. E com o lucro das parcelas asseguraria a continuação do Plano.
A opinião de Groer era favorável.
E não seria a Câmara a ir contra. Não o engenheiro Rodrigues de carvalho.
- ...chamamos-lhe Bairro do Restelo. E é para começar ainda hoje, ao serão.
Duarte Pacheco convocara, para essa mesma noite, o arquitecto Faria da Costa.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Castelo de Bode

Escureceu.
Arrancou um gerador, e acenderam-se algumas lâmpadas.
- Remedeio, Senhor Ministro. A instalação está pronta, à espera que a corrente cá chegue.
A ligação à rede dependia de se aumentar a potência que era fornecida à Cidade. Mas, enquanto durasse a escassez de carvão, nem pensar.
- Mesmo evitar cortes vai ser difícil.
- Falta-nos a barragem... Não é assim?
Uma grande barragem, no rio Zêzere. Maurice Ginoux viera de Grenoble para os primeiros estudos do Castelo de Bode.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Escolas primárias

Oçamentos rigorosos e a cumprir. Era de riscar os excesso de conforto, não fossem as crianças habituarem-se ao que não tinham em casa. E atenção: Nada de rapazes misturados com raparigas.
Os rapazes de um lado, as raparigas de outro. Jogo do dragão em que só pelos olhos os corpos simétricos se tocavam. Desejavam, empurrando.
Duarte encorajara a solução de Baltazar de Castro: aproximar os edifícios. Geminar. Tinham-se feito ensaios em Braga, em Ílhavo. Os custos eram aceitáveis.
No entanto, Raúl Lino mantinha-se irredutível. Rogério de Azevedo teimoso. "...muito susceptíveis, um e outro."
- MAs isto tem de se resolver.

Adiante.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Construção civil

A construção civil reduzida a pequenos empreiteiros. Um tio, pai, filhos. Os rapazes a deixar a escola, se fossem precisos para dar serventia.
Falta de pregos, cimento, vidro. Ganância de sobra.
- ...não se sai do mesmo sítio. Porcaria!
Nem o Cottinelli.
Por que não lhe acabaria ele o Liceu de Santo Amaro? Liceu Dom João de Castro, conseguido no auge de 1938.
Era urgente passar do velho casarão de aluguer, à Junqueira, para os espaços criados de raiz. Salas de desenho enormes. Cavaletes, caixas de luz. Estiradores onde começariam a treinar os rapazes, e algumas raparigas, que se preparavam para seguir Arquitectura.
E Duarte que ambicionava o curso de Arquitectura no Instituto Superior Técnico, queria-os bem preparados.
Mandara buscar as fotografias aéreas tiradas por Groer. Ele próprio assinalara a extensão de terreno a reservar no Alto de Santo Amaro. "Exproprie-se à Casa Vale-Flor."
Depois, o impulso criativo de José Ângelo.
Entregara-lhe o projecto no princípio de 1941. Já era para estar pronto.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares