quarta-feira, 5 de março de 2008

Jardim para cegos

Mas o jardim, comprimido e mortificado entre os seus limites, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos cobriam com o seu aroma apimentado o aroma protocolar das rosas e o aroma oleoso das magnólias amodorradas pelos cantos; e lá bem no fundo notava-se ainda o cheiro a hortelã misturado ao arma infantil da acácia e ao cheiro a compota da murta, e do outro lado do muro o pomar de citrinos derramava sobre o jardim o cheiro a alcova das primeiras flores de laranjeira.

Era um jardim para cegos: a visão era constantemente ofendida mas o olfacto podia sentir um prazer intenso embora não delicado. As rosas Paul Neyron cujas plantas ele próprio comprava em Paris tinham degenerado: estimuladas primeiro e depois cansadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, tinham-se transformado numa expécie de couves cor de carne, obscenas, que exalavam um aroma denso e quase repugnante que nenhum criador frances ousaria esperar.


O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, em Itália




sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Raia de Espanha.

Raia de Espanha. Serranias azuis e violentas que se amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo, planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos barrancos e dos muros, ou caminhos melancolicamente guarnecidos de plátanos, abrindo clareiras na mata de pinheiros mansos, de um verde claro e opulento, onde se escondem os celeiros das campanhas agrícolas. Mas antes de os ganhões desempregados e os contrabandistas de profissão chegarem a essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas desabrigadas, com o rio Erges esmagado entre muralhas de granito, o casario nasce dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras, agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas. Depois vem a planície, triste como um descampado, devassada pelo vento de Espanha, que satura o ar de poeira e solidão. Planície nua, crestada pelo sol, que amadura as infindáveis searas de trigo.
São quilómetros tortuosos, noites fechadas de névoa, olhos e ouvidos varando as sombras, e o rumor alcoviteiro do vento que desce das malhadas da serra. Um homem começa a desafogar o peito quando o amanhecer anuncia os povoados alegres de Espanha. Valverde del Fresno fica numa cova. A aldeia ressalta inesperadamente do azul liso das montanhas; só a descobre quem se afunda nas vereias que rodeiam a subida da serra.

Fernando Namora
A Noite e a Madrugada
A Ler por aí... na raia beirã

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Acreditar

Confesso não ter vergonha de acreditar naquilo em que acredito: no cada vez mais raro companheirismo, por exemplo; na dedicação a pessoas ou na fidelidade a objectivos.

Fernando Namora
Retirado do site Vidas Lusófonas

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Grades

"A lua derramava-se pelos telhados, desenhando no meio da cela, violentamente, os dedos negros das grades."

A Noite e a Madrugada
Fernando Namora
A Ler por aí... na raia beirã

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Gato

"Havia um plano naqueles passos subtis, no arrepio sedoso dos pêlos, naquelas pausas em que as patas ficavam imobilizadas no ar."


Fernando Namora
A Noite e a Madrugada
A Ler por aí... na raia beirã

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Ler por aí... o blog

Um espaço com mais espaço, para escrever (sobre) o que me vai chamando a atenção à medida que o Ler por aí... é construido.