quinta-feira, 6 de março de 2008

Flor de laranjeira

Agora a estrada atravessava os laranjais em flor e tal como a Lua Cheia anula a paisagem também o perfume nupcial das flores de laranjeira anulava tudo: o cheiro dos cavalos suados, o cheiro a couro dos estofos, o cheiro do Príncipe e o cheiro do jesuíta, tudo era varrido por aquele perfume islâmico que evoca buris e além-túmulos carnais.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Conventos de Palermo

A estrada descia ligeiramente e ali perto já se via Palermo totalmente às escuras. As casas baixas e amontoadas pareciam esmagadas pelo volume desmedido dos conventos; eram às dezenas, todos enormes, muitos deles reunidos em grupos de dois ou três, conventos de homens e de mulheres, conventos ricos e conventos pobres, conventos nobres e conventos plebeus, conventos de Jesuítas, de Beneditinos, de Franciscanos, de Capuchinhos, de Carmelitas, de Redentoristas, de Agostinhos... Pálidas cúpulas d curvas imprecisas semelhantes a seios vazios de leite erguiam-se ainda mais alto, mas eram eles, os conventos, que conferiam à cidade a sua tristeza e o seu carácter, o seu decoro e ao mesmo tempo aquela sensação de morte que nem a frenética luz siciliana conseguia dissipar. Àquela hora, já quase noite cerrada, eram eles os déspotas da paisagem.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

Jantar na villa Salina

O jantar na villa Salina era servido com o mesmo fausto esbonetado que então caracterizava o estilo do Reino das Duas Sicílias. Só o número de comensais (catorze contando com os donos da casa, os filhos, as governantas e os perceptores) bastava para conferir um aspecto imponente à mesa. Coberta com uma toalha finíssima mas remendada, resplandecia à luz de um potente candeeiro a petróleo precariamente pendurado sob a ninfa, um lustre de Murano. Pelas janelas ainda entrava luz, mas as figuras brancas que simulavam baixos-relevos sobre o fundo escuro das bandeiras das portasjá se perdiam na sombra. A baixela era de prata maciça e o medalhão liso dos esplêndidos copos de cristal facetado da Boémia ostentava as iiciais F.D. (Fernandus dedit) em memória de uma munificência real, mas os pratos, todos marcados com iniciais ilustres, eram os sobreviventes dos estragos feitos pelos moços da cozinha e provinham de serviços diferentes. Os de formato maior, Capodimonte lindíssimos com a larga cercadura verde-amêndoa salpicada de pequenas âncoras douradas, estavam reservados ao Príncipe que gostava de se rodear de objectos à sua escala, exceptuando a mulher. Quando entrou na sala de jantar já estavam todos reunidos, a Princesa era a única que estava sentada, os outros mantinham-se de pé atrás das cadeiras. Diante do seu talher, ladeados por uma pilha de pratos, sobressaíam os flancos de prata da enorme terrina com a tampa encimada pelo LEopardo dançante. Era o próprio Príncipe quem deitava a sopa nos pratos, grata tarefa símbolo das atribuições alimentares do pater familias.

O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, Itália

quarta-feira, 5 de março de 2008

Jardim para cegos

Mas o jardim, comprimido e mortificado entre os seus limites, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos cobriam com o seu aroma apimentado o aroma protocolar das rosas e o aroma oleoso das magnólias amodorradas pelos cantos; e lá bem no fundo notava-se ainda o cheiro a hortelã misturado ao arma infantil da acácia e ao cheiro a compota da murta, e do outro lado do muro o pomar de citrinos derramava sobre o jardim o cheiro a alcova das primeiras flores de laranjeira.

Era um jardim para cegos: a visão era constantemente ofendida mas o olfacto podia sentir um prazer intenso embora não delicado. As rosas Paul Neyron cujas plantas ele próprio comprava em Paris tinham degenerado: estimuladas primeiro e depois cansadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, tinham-se transformado numa expécie de couves cor de carne, obscenas, que exalavam um aroma denso e quase repugnante que nenhum criador frances ousaria esperar.


O Leopardo
G. Tomasi di Lampedusa
A Ler por aí... na Sicília, em Itália




sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Raia de Espanha.

Raia de Espanha. Serranias azuis e violentas que se amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo, planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos barrancos e dos muros, ou caminhos melancolicamente guarnecidos de plátanos, abrindo clareiras na mata de pinheiros mansos, de um verde claro e opulento, onde se escondem os celeiros das campanhas agrícolas. Mas antes de os ganhões desempregados e os contrabandistas de profissão chegarem a essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas desabrigadas, com o rio Erges esmagado entre muralhas de granito, o casario nasce dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras, agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas. Depois vem a planície, triste como um descampado, devassada pelo vento de Espanha, que satura o ar de poeira e solidão. Planície nua, crestada pelo sol, que amadura as infindáveis searas de trigo.
São quilómetros tortuosos, noites fechadas de névoa, olhos e ouvidos varando as sombras, e o rumor alcoviteiro do vento que desce das malhadas da serra. Um homem começa a desafogar o peito quando o amanhecer anuncia os povoados alegres de Espanha. Valverde del Fresno fica numa cova. A aldeia ressalta inesperadamente do azul liso das montanhas; só a descobre quem se afunda nas vereias que rodeiam a subida da serra.

Fernando Namora
A Noite e a Madrugada
A Ler por aí... na raia beirã

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Acreditar

Confesso não ter vergonha de acreditar naquilo em que acredito: no cada vez mais raro companheirismo, por exemplo; na dedicação a pessoas ou na fidelidade a objectivos.

Fernando Namora
Retirado do site Vidas Lusófonas

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Grades

"A lua derramava-se pelos telhados, desenhando no meio da cela, violentamente, os dedos negros das grades."

A Noite e a Madrugada
Fernando Namora
A Ler por aí... na raia beirã

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Gato

"Havia um plano naqueles passos subtis, no arrepio sedoso dos pêlos, naquelas pausas em que as patas ficavam imobilizadas no ar."


Fernando Namora
A Noite e a Madrugada
A Ler por aí... na raia beirã

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Ler por aí... o blog

Um espaço com mais espaço, para escrever (sobre) o que me vai chamando a atenção à medida que o Ler por aí... é construido.