segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Aldeia

De longe ela pareceu-lhes bonita e de ordenada geometria, como são frequentemente as pequenas aldeias de pescadores. As habitações, todavia, pareciam-lhes de forma bizarra. Quando entraram no lugar perceberam porquê. Quase todas as casas tinham como fachada a proa de um barco; eram casas de planta triangular, algumas de madeira preciosa, cuja única parede de pedra era a que fechava os dois lados do triângulo. Algumas eram casas belíssimas, contam os atónitos ingleses, cujo interior pouco tinha de casa porque os objectos - lucernas, bancos, mesas e até as camas - quase tudo tinha sido apanhado no mar. Muitas tinham vigias que faziam as vezes de janelas e visto que davam para o precipício e para o mar lá em baixo, parecia que se estava num barco ancorado no cimo de uma montanha. Aquelas casas eram construídas com restos de naufrágios que os rochedos das Flores e do Corvo ofereceram durante séculos às naus que por ali passavam.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

As Flores

Em Abril de 1839 dois cidadãos britânicos desembarcaram na ilha das Flores que, com a do Corvo, é a ilha mais remota e solitária do arquipélago dos Açores. Conduzia-os a curiosidade, que é sempre um óptimo guia. Aportaram a Santa Cruz, uma aldeia situada no extremo setentrional da ilha, que possuía um pequeno porto natural e que ainda hoje é o local mais seguro para desembarcar nas Flores. De Santa Cruz empreenderam uma viagem costeira, a pé e de liteira, até Laje das Flores, que fica a uns quarenta quilómetros de distância, porque queriam ver a igreja que os portugueses ali tinham construído no século dezassete. a liteira, que oito homens da ilha levavam aos ombros, era feita da vela de um barco e, pela descrição dos viajantes, dir-se-ia antes uma rede atada a dois paus. Como todas as outras ilhas do arquipélago, Flores é de formação vulcânica, mas ao contrário de São Miguel e do Faial, por exemplo, que têm praias claras e bosques verdíssimos, esta é uma grande placa de lava negra no meio do oceano.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

sábado, 9 de agosto de 2008

Rochas

Moveu o braço para a esquerda e apontou duas excrecências turquesa, como dois chapéus pousados na água. Que rochas feias, disse, parecem almofadas. Não as vejo, disse a mulher. Além, um pouco mais paras a esquerda, mesmo em frente ao meu dedo, estás a vê-las?, disse Marcel. Passou o braço direito pelos ombros da mulher, com a mão estendida para a frente. Mesmo na direcção do meu dedo, repetiu.
O revisor sentara-se num banco junto do parapeito, tinha terminado a sua volta e estava a observar os movimentros deles. Certamente intuiu o sentido da conversa, porque se aproximou sorrindo e falou para a mulher com ar divertido. Ela ouviu com atenção e depois exclamou: nãão! e levou a mão à boca com ar travesso e infantil como que a reprimir uma risada. O que é que está a dizer?, perguntou o homem com o ar ligeiramente parvo de quem não está a seguir a conversa. A mulher dirigiu ao revisor um olhar cúmplice. Riam-lhe os olhos e era muito bonita. Diz que não são rochas, disse, mantendo propositadamente em suspenso o que acabara de saber. O homem olhou-a com ar interrogativo e talvez um pouco aborrecido. São pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores, exclamou ela, foi exactamenteo que ele disse. E finalmente libertou a gargalhada reprimida, uma pequena gargalhada breve e sonora.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Tipos

Os homens são de pele clara, de olhos admirados como se neles pairasse o espanto de um espectáculovisto e esquecido, são silenciosos e solitários, mas não tristes, e riem muitas vezes e por nada como crianças. As mulheres são belas e altivas, com os malares proeminentes e a testa alta, caminham com os cântaros à cabeça e ao descer as escadarias íngremes que levam à água nada do seu corpo se move, de modo que parecem estátuas a quem algum deus tenha concedido o andar.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ocidente

Depois de ter velejado durante muitos dias e muitas noites, compreendi que o Ocidente não tem fim, antes continua a deslocar-se connosco, e que podemos persegui-lo quanto quisermos que nunca o alcançamos. Assim é o mar ignoto que fica para além das Colunas, sem fim e sempre igual, do qual emergem, como pequena espinha dorsal de um colosso desaparecido, pequenas cristas de ilhas, nós de rocha perdidos no azul.

Mulher de Porto Pim
Antonio Tabucchi
A Ler por aí... nos Açores

Qual vai ser a Sugestão de Setembro 2008?

Veja lá se consegue descobrir qual vai ser o livro, e respectivo autor, e o lugar para o ler, que iremos sugerir em Setembro de 2008 no Ler por aí... Espreite O Blog, pois vamos colocar pequenos trechos do livro* ao longo do mês de Agosto. Quando souber, contacte-nos.




Margarida Branco
Ler por aí... em Setembro de 2008

* A reprodução de partes da obra é feita com autorização da editora.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Abóbora

Começava aperguntar-se se aquele seria o trabalho certo para si. Era muito bom pensar que se podia ajudar as pessoas a resolver os seus problemas, mas esses problemas podiam ser de partir o coração. O caso Malatsi fora esquisito. Esperara que Mma Malatsi ficasse transtornada quando lhe mostrara a prova de que o marido fora comido por um crocodilo, mas ela não parecera nada perturbada. Que tinha ela dito? Mas tenho imenso que fazer. Que coisa tão extraordinária e insensível para alguém dizer quando se acaba de perder o marido. Será que ela não lhe dava mais valor do que isso?
Mma Ramotsw deteve-se, a colher semi-mergulhada no guisado que fervia em lume brando. Quando as pessoas ficavam assim imperturbáveis, Mma Christie esperava que o leitor desconfiasse. O que teria Mma Christie pensado se tivesse visto a fria reacção de Mma Malatsi, a sua virtual indiferença? Teria pensado: Esta mulher matou o marido! É por isso que fica imperturbável perante a notícia da sua morte. Ela sabia desde o início que ele estava morto!
Mas então e o crocodilo e o baptismo, e os outros pecadores? Não, ela tinha de estar inocente. Talvez lhe desejasse a morte, e então a sua prece fora atendida pelo crocodilo. Será que isso nos fazia criminosos aos olhos de Deus, se então acontecesse alguma coisa? Deus saberia, percebem, que desejáramos a morte de alguém porque não se pode ter segredos para Deus. todos sabiam isso.
Deteve-se. Era altura de tirar a abóbora da panelae de a comer. Em última análise, era isso que solucionava estes grandes problemas da vida. Podia pensar-se e tornar a pensar e não chegar a lado algum, mas tinha de se continuar a comer a abóbora. Isso fazia-nos voltar à terra. Isso dáva-nos uma razão para prosseguir. Abóbora.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botswana

Abrir um negócio (3)

Abriram o escritório numa segunda-feira. Mma Ramotswe sentou-se à sua secretária e Mma Makutsi à dela, por trás da máquina de escrever. Olhou para Mma Ramotswe e sorriu ainda mais abertamente.
- Estou pronta para o trabalho - disse ela. - Estou pronta para começar.
- Hummm - fez Mma Ramotswe. - Ainda estamos no princípio. Acabamos de abrir. Temos de esperar que apareça um cliente.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botsuana

Abrir um negócio (2)

Havia muito que fazer. Foi chamado um mestre de obras para substituir o estuque danificado e reparar o telhado de zinco e, de novo perante a oferta de pagamento à vista, isso foi executado numa semana. Depois Mma Ramotswe deitou-se ao trabalho de pintar, e depressa concluiu o exterior em ocre e o interior em branco. Comprou cortinas amarelas novas para as janelas e, num invulgar momento de extravagância, deixou-se tentar por um conjunto de escritório com duas secretárias e duas cadeiras, novinho em folha. O seu amigo, Mr. J. L. B. Matekoni, proprietário da Tlokweng Road Speedy Motors, trouxe-lhe uma velha máquina de escrever excedente das suas próprias necessidades e que trabalhava muito bem, e com isso o escritório ficou pronto a abrir - logo que ela arranjasse uma secretária.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
A Ler por aí... no Botswana

Abrir um negócio

Mma Ramotswe tinha pensado que não seri fácil abrir uma agência de detectives. As pessoas cometiam sempre o erro de pensar que abrir um negócio era simples e depois descobriam que havia todo o tipo de problemas escondidos e exigências imprevistas. Ouvira falar de pessoas que tinham aberto os seus negócios e aguentado quatro ou cinco semanas até ficarem sem dinheiro ou reservas, ou ambos. Era sempre mais difícil do que se tinha pensado.

A Agência Nº1 de Mulheres Detectives
Alexander McCall Smith
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